Se eu sou um personagem, ele é um mero expectador ou um agente ativo na história?
Como vídeos de homenagem a personagens me levam à reflexão sobre identidade, luta interior e transformação.
Eu nunca fui de passar muito tempo no YouTube, pois quase sempre usei exclusivamente para ver vídeos rápidos como trailer de Filmes e Jogos Eletrônicos que eu estava aguardando ansiosamente. Mas, de uns tempos para cá, passei a ser um heavy user da plataforma por questões educativas.
Há muito conteúdo que une o útil ao agradável por lá, e meu gosto por vídeos sobre curiosidades geográficas e históricas faz o algoritmo me entregar várias preciosidades.
Além dos vídeos “úteis”, há também os que entretém, trazendo junto uma reflexão ou provocar uma introspecção. (E isso é um dos objetivos do canal do Na Sala de Espera!)
Uma das coisas que jamais me imaginei fazendo era ficar assistindo vídeos editados em homenagem à personagens, pois meu “eu” não enxerga isso como “conteúdo relevante”. Ainda bem que pagamos com nossa língua durante a vida, pois o que antes achava esquisito, hoje se tornou muito comum, para mim.
Então, eu tive a ideia de escrever isso por conta dos vídeos abaixo, e espero que agregue algo para ti, assim como tem agregado tanto em mim:
Arya Stark - “Esta não sou eu”
Game of Thrones foi um fenômeno mundial e, independente daquele final corrido e atropelado, uma coisa é certa: marcou uma década no entretenimento audiovisual. É uma história com vários núcleos, e a personagem Arya Stark é, de longe, minha favorita dentre todos os personagens em qualquer série que já acompanhei na vida, até então.
A história de Arya é simples: ela nasceu em uma família nobre do Norte, e seria destinada a se tornar uma lady em algum castelo ao se casar com um príncipe no devido tempo. Mas, ela nunca quis isso. Ela queria lutar com espadas, queria estar na ação, queria fazer o que lhe agradava. Ela não se contentava com o papel que tentavam impor sobre ela, e sempre buscou sua independência, em todas as ocasiões.
O motivo que esse vídeo em homenagem à personagem me arrancou lágrimas já na primeira vez que o assisti não foi só porque o autor do canal conseguiu condensar tudo que a personagem é e representa com a trilha sonora de ‘Tessa’, de Steve Jablonsky, editada com maestria. Ele vai além: ele aborda a questão de identidade. Sobre quem a personagem luta para ser.
Dentre vários vídeos incríveis que existem na plataforma homenageando Arya Stark, esse mexeu demais comigo justamente por ter uma edição pensada na gênese da personagem: “esta não sou eu”. É a apresentação da sua persona pela própria personagem.
Eu gosto demais de como a história de Arya ensina sobre sustentar a própria subjetividade em todas as circunstâncias. Ela representa a luta para conservar a originalidade em meio a tantos incentivos e desânimos. Seria tão mais fácil, tão cômodo ela largar suas preferências para se acomodar ao que sua família, seu povo e os adversários queriam dela. Mas, não. Ela segue firme na luta para alcançar o que sempre quis ser, sem importar se parente, amigo ou a sociedade digam o contrário.
Esse vídeo tributo a ela mostra como é possível não se deixar moldar ao ambiente em que nascemos ou estamos inseridos. Quando nos posicionamos por um propósito, não vamos cair por qualquer coisa ou discurso.
Não é porque nasci em uma determinada família que preciso seguir conforme os costumes aprendidos ali. Independente de ser um brasileiro, eu não preciso agir “como um brasileiro” ou gostar de coisas que são típicas de um latino americano. Mesmo que eu possua algumas características específicas, isso não significa que preciso aceitar tudo que as pessoas sugerem ao meu respeito como se me limitasse a alguns rótulos de personalidade.
Sempre me incomodei com a descrição que meus pais faziam de mim quando crescia e até dos amigos mais próximos. Eu sei que eles me amam e querem o meu melhor, mas eu não sou esse Rafael que acreditam que sou. E, apesar de projetarem em mim suas interpretações de quem eu seria, não cabe a terceiros me definir como pessoa.
Eu não sou o que meus pais querem que eu seja.
Eu não sou o que dizem que sou baseado em um agrupamento de características, profissional ou socialmente.
Acredito que a maneira de descobrir quem sou é evitando ceder às projeções que fazem da minha pessoa e ir direto à fonte, ou melhor: a quem me trouxe à existência. Somente quando me aproximo da Verdade é que consigo vislumbrar minha verdadeira identidade. Pois, quanto mais me aproximo Daquele que me criou, menos versões de mim existirão no cotidiano.
Mas, ao refletir mais sobre identidade, acabo esbarrando em um campo ainda mais amplo — o da filosofia. E, com o advento da Inteligência Artificial, fica muito mais acessível lidar com as ideias de alguns pensadores que ajudam a iluminar essa tensão entre o que esperam de nós e o que somos de fato.
A filósofa francesa Judith Butler, por exemplo, nos convida a considerar a identidade como algo construído por meio de atos repetitivos — ela chama isso de performatividade. Ou seja, não nascemos com uma essência imutável, mas nos tornamos quem somos ao longo do tempo, à medida que escolhemos e repetimos certos comportamentos. Arya, ao se recusar a viver como uma “lady” e buscar a espada, está justamente encenando (performando) sua subjetividade. Ela diz ao mundo: “esta não sou eu”, e reafirma isso em cada decisão.
Por outro lado, o psicanalista francês Jacques Lacan entende que nossa identidade é moldada por forças inconscientes e pela linguagem: somos definidos, na maioria, por como os outros nos veem e pelas palavras que usamos (ou que usam sobre nós). A luta de Arya para não se perder em meio às muitas identidades que assume (como “ninguém”, a identidade zerada da seita que ela conheceu na história) expressa esse embate: entre o que o mundo projeta em nós e aquilo que tentamos preservar como núcleo autêntico do nosso “eu”.
Entre Butler e Lacan, entre performance e estrutura, talvez a identidade esteja mesmo nesse campo de batalha do que o mundo diz que devemos ser e o que acreditamos ser de verdade. E, como Arya, talvez só consigamos descobrir quem realmente somos quando resistimos a viver uma vida imposta e passamos a viver uma vida escolhida. No meu caso, quero viver como o Senhor, que tem planos mais altos e me conhece melhor do que eu mesmo, me enxerga e diz quem sou.
LOST - Personagens em Pedaços
Talvez LOST seja meu “confort show”, aquele seriado que vez ou outra me pego reprisando por trazer um senso de nostalgia e familiaridade. É, sem dúvidas, uma das histórias mais bem escritas e planejadas que já consumi até hoje. Independente do desfecho da trama ser terrivelmente destoante de tudo que construíram ao longo dos 6 anos, é uma série que marcou uma geração e revolucionou a televisão na época.
Esse vídeo tributo não é específico a um personagem, até porque LOST consiste na história de vários personagens juntos que sobreviveram a uma queda de avião em uma ilha tropical e precisam lutar para permanecerem vivos em meio a mistérios e dramas pessoais. É um show de vidas distintas que se cruzam em uma ilha “deserta” no meio do nada. O autor do vídeo conseguiu resumir a série em uma edição magnífica, somando a uma música que ironicamente eu já gostava antes de me deparar com essa peça, a Pieces da banda RED.
O seriado, sem querer dar spoilers aqui, prometeu um “perdidos numa ilha” e acabou entregando um sincretismo religioso envelopado em um storytelling criativo e envolvente, culminando em um desfecho poético (e teologicamente problemático, para se dizer o mínimo, haha). Mas, isso não invalida o maravilhoso desenvolvimento de personagens que trouxe.
Basicamente cada temporada, embora continuasse o plot principal da série, trazia cada vez mais novos personagens que adicionavam uma camada extra na trama. É gostoso captar alguns “easter eggs” (curiosidades) escondidos nas tramas, cenas e até nos próprios nomes dos personagens e lugares. O sobrenome da maioria dos personagens principais homenageia alguma figura histórica conhecida: Danielle Rousseau, James Ford, Desmond Hume, John Locke, etc.
LOST foi a primeira série que assisti com atenção total. E talvez por isso ela ainda ecoe tanto dentro de mim. Não era só uma ilha cheia de mistérios ou personagens carismáticos. Era, sobretudo, uma narrativa sobre pessoas partidas. Pessoas tentando se encontrar após terem se perdido. Ou, como o título da música que acompanha esse vídeo tributo, Pieces, resume tão bem: fragmentos de alma tentando se recompor.
Estou aqui novamente
Tão longe de você
Uma bagunça despedaçada
Apenas pedaços espalhados de quem eu sou
Tentei tanto
Pensei que poderia fazer isso sozinho
Eu perdi tanto pelo caminho
O vídeo, que condensa toda a série com falas-chave e momentos de dor, redenção e descoberta, é quase um sermão visual sobre o que significa estar vivo, errar feio, amar profundamente, sofrer intensamente e buscar um sentido para tudo isso. Entre flashbacks, vidas passadas e segundas chances, LOST se debruça sobre um dos temas mais sensíveis da existência humana: o tempo. E o que fazemos com o tempo que nos é dado.
É uma história de Vida e Morte, conforme o nome da principal trilha sonora da série Life and Death. Uma verdadeira ilustração do meu livro favorito da Bíblia: Eclesiastes.
"Tudo tem o seu tempo determinado, e há tempo para todo propósito debaixo do céu: Tempo de nascer, e tempo de morrer;
tempo de plantar, e tempo de arrancar o que se plantou."
— Eclesiastes 3:1-2
Esse trecho é o que mais sintetiza LOST para mim. A série questiona constantemente o sentido dos eventos, como por que certas pessoas estão na ilha? Por que morreram? O que significa “consertar o que foi quebrado”? E esse versículo oferece a moldura perfeita: há um tempo para tudo, inclusive para o sofrimento, reconciliação e morte.
Há tempo para que Jack encontre redenção, para que Sayid descubra compaixão, para que Locke tenha fé, para que Hurley assuma responsabilidade. Há tempo até para perdão (ainda que tardiamente). Assim como o Pregador de Eclesiastes reflete sobre a brevidade da vida e a futilidade de buscar sentido sem Deus, LOST também confronta o vazio de uma vida sem propósito.
No fim, a pergunta não é “por que isso aconteceu?”, mas “o que eu fiz com o que me aconteceu?”. E talvez seja nesse ponto que a série e o livro bíblico se encontram: ambos nos lembram que tudo é passageiro, tudo é frágil. E por isso mesmo, tudo importa.
TIO IROH - Moldando seu próprio destino
Se você sair por aí perguntando sobre o desenho Avatar - A Lenda de Aang, talvez se depare com a indagação de ser a melhor animação televisiva desse século, dada a enorme aprovação do público e da crítica. Não sei dizer se gosto mais de A Lenda de Aang ou de My Hero Academia, pois ambos são bons e inspiradores em suas próprias maneiras.
Mas, favoritismo de lado, uma coisa é incontestavelmente unânime na opinião de todos que assistem à série: Tio Iroh é o personagem mais amado do mundo Avatar!
O personagem que começou a história ao lado dos vilões, mas não era um.
O senhor que tutelava o sobrinho que, naquele momento, era o antagonista, mas dava conselhos que direcionava o parente para a reflexão e introspecção.
Não tem como não amar o Iroh, pois ele é a sabedoria encarnada em um personagem com passado conturbado e doloroso.
Esse vídeo foi uma grata surpresa para mim, quando encontrei. Me apaixonei pelo canal Divide Music por ser um artista que cria músicas em homenagem aos personagens da cultura pop. E a maioria é no gênero rock 🤘😎🤘!
Outra descoberta que me surpreendeu positivamente foi conhecer o trabalho de artistas que produzem músicas baseadas nos meus personagens favoritos — e agora isso se tornou um hábito que recomendo.
Apesar deste vídeo em específico do Iroh não ser de rock, ele captura perfeitamente a essência do personagem. A letra, baseada nas próprias falas do personagem, transmite toda filosofia do homem que já foi uma figura temida por muitos, mas que encontrou a sabedoria e mudou da água para o vinho.
Você nem sempre pode ver a luz no fim do túnel
Mas se você continuar se movendo, dias melhores virão
Suas falhas são uma oportunidade para tentar novamente e você eventualmente
Encontrará seu caminho, encontrará seu caminho e moldará seu próprio destino
É impossível não se comover com toda história envolvendo o personagem (principalmente com a questão do dublador original dele em inglês). E essa música é um alento, assim como o Iroh é, e acredito que fez tanta justiça ao personagem que merece seus mais de 2 milhões de views.
Não há muito que eu possa acrescentar ao vídeo, além de reconhecer o quanto ele traduz com fidelidade e beleza a esperança que Iroh representa e que ele imputa no (até então) vilão da série. Ele ama o sobrinho, e demonstra isso repetidamente, mesmo o menor não reconhecendo isso algumas vezes. E, por amar, ele consegue transmitir os ensinamentos, às vezes sem testemunhar pessoalmente a transformação nele. Mas, sempre convicto de que o sobrinho Zuko só precisa respirar e moldar seu próprio destino, sem precisar se entregar às amarras de um destino encomendado para ele.
Iroh me lembra que o verdadeiro amor não controla, apenas guia. E isso, para mim, se aproxima do amor de Deus: firme, paciente, generoso — disposto a semear mesmo sem colher de imediato. Às vezes, moldar o próprio destino começa com ouvir, parar e confiar que há sabedoria esperando para nos direcionar no momento certo.
E, assim como uma coisa leva a outra, o algoritmo do YouTube recomendou um vídeo que me fez conhecer outro canal incrível que é o Cinema Therapy, que conta com um film maker profissional e um terapeuta licenciado comentando sobre o personagem Iroh.
Eu recomendo fortemente para quem tem o interesse em se entreter conhecendo mais do personagem Iroh pela perspectiva de um terapeuta a assistir esse vídeo inteiro. Ele está em inglês, mas há opção de habilitar legendas em Português (tradução) no botão CC do YouTube. Tenho certeza que, se você mergulhar nessa análise junto deles, irá terminar em lágrimas, assim como o próprio dono do canal no vídeo:
Conclusão
Então, esses foram apenas três exemplos de como diferentes tipos de conteúdo no YouTube têm me levado à reflexão. Sei que buscamos desenhos, séries e filmes principalmente por lazer — afinal, é entretenimento. Mas isso não significa que não possamos aprender com eles.
A ficção, muitas vezes, nos ajuda a enxergar com mais clareza o mundo ao nosso redor. E os personagens, com suas falhas, decisões e jornadas, nos fazem refletir sobre nossas próprias escolhas e padrões de comportamento.
Nesse mundo caótico e acelerado em que vivemos, é importante termos boas referências — e sim, isso pode vir da literatura, da fé, e também da cultura pop. Eu me inspiro no melhor que esses personagens têm a oferecer, porque acredito que há sabedoria e verdade sendo reproduzidas neles.
E como personagens da nossa própria história, cabe a nós decidirmos como será conduzida a trama: seremos meros espectadores dos eventos da vida — ou, como Arya Stark, os sobreviventes do voo Oceanic 815 e o Tio Iroh, moldaremos o nosso próprio destino?